1919 – A patente

É uma comédia em um ato escrito por Luigi Pirandello em 1917 com o título ‘A patenti, destinado à performance teatral em língua siciliana para o ator Angelo Musco que a recitou pela primeira vez em 23 de março de 1918 no teatro Alfieri em Turim e posteriormente em 19 de fevereiro de 1919 no teatro da Argentina em Roma. O drama propõe novamente o tema do romance homônimo, composto em 1911.

In Italiano – La patente
‘N Sicilianu – ‘A patenti

A patente

A patente  
(La patente) – 1919
Comédia em um ato

PERSONAGENS
O juiz D’Andrea
Marranca, oficial de justiça
Três outros Juízes
Rosario Chiàrchiaro
Rosinella, sua filha

Gabinete do Juiz D’Andrea. Estante grande ocupa quase toda a parede ao fundo, cheia de caixas com arquivos, abarrotados de documentos. Escrivaninha sobrecarregada de papéis, à direita, ao fundo. Ao lado, à parede da direita, uma outra prateleira. A cadeira de braços de couro do juiz, junto à escrivaninha. Outra cadeira antiga. O ambiente é antiquado. Na parede direita, a porta. À esquerda, uma janela ampla, alta, com vitral antigo. Perto dajanela, uma coluna sobre a qual vê-se uma grande gaiola. Num canto, uma portinhola oculta.

D’Andrea entra pela porta com chapéu à cabeça e sobretudo. Carrega na mão uma gaiolinha um pouco maior que um palmo. Vai até a gaiola maior, abre a portinhola, depois a portinhola da gaiolinha donde retira um pintassilgo, transferindo-o para a gaiola maior.

D’Andrea : Aí, dentro! Entre, seu preguiçoso! Oh, pronto… Quietinho agora e basta. Me deixe conduzir a Justiça entre essa raivosa e mesquinha humanidade!

Retira o, sobretudo e o chapéu e colocando-os no cabide. Senta-se à escrivaninha; pega os autos do processo que deve instruir, os sacode ao ar impaciente, e resmunga.

D’Andrea : Ah, meu caro… Fica absorto, pensando, após um tempo toca a campainha. Entra o oficial de justiça Marranca.

Marranca : Às ordens, senhor juiz!

D’Andrea : Tome, Marranca: vá ao Beco do Forno, aqui perto, à casa do Chiàrchiaro.

Marranca : (num salto para trás, fazendo um sinal de esconjuro com as mãos) Pelo amor de Deus! Não diga este nome, senhor juiz!

D’Andrea : (irritadíssimo, batendo na escrivaninha com o punho) Basta, por Deus! Proíbo-lhe de proferir assim, na minha frente, tanta asneira, prejudicando um pobre homem. E que fique bem claro!

Marranca : Desculpe, senhor juiz! Mas eu disse também pelo seu bem…

D’Andrea : Ah, e ainda insiste?

Marranca : Não falo mais! Não falo mais! O que deseja que eu vá fazer na casa deste… Deste… Cavalheiro?

D’Andrea : Diga que preciso falar-lhe, e que se apresente imediatamente.

Marranca : Imediatamente, senhor Juiz. Como deseja. Mais alguma ordem?

D’Andrea : Nenhuma. Vá!

Marranca sai, segurando a porta para dar passagem a outros três juízes, que entram vestindo toga e touca.

Trocam saudações com D’Andrea, e vão os três olhar o pintassilgo na gaiola.

Primeiro juiz : O que disse, hein, este senhor pintassilgo?

Segundo juiz : Sabe que é realmente curioso com este passarinho?

Terceiro juiz : Toda a cidade chama: o “Juiz Pintassilgo”!

Primeiro juiz : Cadê, cadê a gaiolinha?

Segundo juiz : (pegando a gaiolinha da escrivaninha onde estava guardada) Aqui está ela! Meus senhores, olhem: coisa de menino! Logo um homem tão sério…

D’Andrea : Ah, eu? Coisa de menino? Por conta desta gaiola? E vocês, então, se comportando assim?!

Terceiro juiz : Ei, ei, nós honramos a toga!

D’Andrea : Mas chega, não brinquemos mais! Onde estamos?! Quando garoto, brincava com os meus amigos “No Tribunal”. Um era o réu, outro, presidente do júri; e também, juízes, advogados… Brincavam também os senhores e lhes asseguro que, naquele tempo, éramos todos bem mais sérios!

Primeiro juiz : Ei, nada disso!

Segundo juiz : Tudo sempre acabava em pancadaria!

Terceiro juiz : (mostrando uma velha cicatriz na testa) Olhem cá: uma cicatriz de uma pedrada que levei de um advogado de defesa, enquanto fugia do promotor!

D’Andrea : Tudo que havia de belo na toga era a grandeza, e dentro dela nós éramos meninos. Agora é o oposto: nós, grandes, e a toga. O mesmo jogo de quando éramos meninos. É preciso coragem para usá-la a sério.
Pega os autos do processo Chiàrchiaro.

D’Andrea : Aqui está, meus senhores. Eu devo instruir este processo. Nada de mais iníquo que este processo. Iníquo, porque contém a mais desumana injustiça contra a qual um pobre diabo tenta rebelar-se, sem nenhuma probabilidade de salvar-se. Há uma vítima aqui, que mal pode pegar-se com um. Quis, logo neste processo, pegar-se com dois. Com os dois primeiros que lhe apareceram, e sim, senhores, a justiça deve lhe ser implacável, implacável, sem volta, ratificando assim, ferozmente, a iniqüidade de que este pobre homem é vítima.

Primeiro juiz : Mas que processo é esse?

D’Andrea : Aquele aberto por Rosario Chiàrchiaro.
Num segundo, ao ouvir o nome, os três juízes, como Marranca, dão um salto para trás, fazendo um gesto de esconjuro, assustados, gritando.

Juízes : Pela Madona Santíssima! Isola! Quer ficar quieto!

D’Andrea : Pronto, viram? E deveriam justamente os senhores fazer justiça a este pobre homem!

Primeiro juiz : Mas que justiça?! Trata-se de um louco!

D’Andrea : Um desgraçado!

Segundo juiz : Pode ser até um desgraçado… Mas, desculpe, é definitivamente um louco! Move uma ação por difamação contra o filho do prefeito, nada menos, e ainda…

D’Andrea : … Contra o assessor Fazio!

Terceiro juiz : Por difamação?

Primeiro juiz : É isso mesmo, compreende? Porque, segundo relata, surpreendeu os dois fazendo um gesto de esconjuro, quando passava por eles.

Segundo juiz : Mas como difamação se em toda cidade, há pelo menos dois anos, está difundidíssima sua imensa fama de pé-frio?

D’Andrea : E muitas testemunhas podem vir ao tribunal e jurar que em tantas e tantas ocasiões ele deu sinais de conhecer bem esta sua fama maldita, reagindo com protestos furiosos!

Primeiro juiz : Ah, veja? E você mesmo o diz!

Segundo juiz : Ora, como condenar, em sã consciência, o filho do prefeito e o assessor Fazio por difamação por terem feito algo que há tempos costumam fazer todos, abertamente?

D’Andrea : Inclusive os senhores…

Juízes : Claro! É terrível, sabia? Deus nos livre e guarde!

D’Andrea : E depois ficam espantados, meus amigos, que eu traga comigo um pintassilgo? Mesmo assim, o trago, os senhores sabem, por que estou sozinho há um ano. Era de minha mãe esse passarinho. Para mim é a lembrança viva dela: não poderia me separar. Falo com ele, imitando, assim, seu trinado, o seu canto, e ele me responde. Eu não sei o que lhe digo; mas ele, se me responde, é sinal que capta qualquer sentido nos sons que lhe faço. Tal como nós, meus amigos, quando acreditamos que a natureza nos fala com a poesia de suas flores, ou com as estrelas do céu, enquanto a natureza talvez nem perceba nossa existência!

Primeiro juiz : Siga, siga, meu caro, com esta filosofia, e verá como acabará bem! Ouvem-se batidas na porta, vê-se a cabeça de Marranca, sinalizando querer entrar.

Marranca : Posso entrar?

D’Andrea : Entre, Marranca!

Marranca : Em casa, ele não estava, senhor juiz. Ordenei a uma de suas filhas que, ao chegar, o mandem pra cá. Mas, veio comigo a menorzinha delas: Rosinella. Se vossa senhoria quiser recebê-la…

D’Andrea : Mas não: eu quero falar com ele!

Marranca : Disse que deseja lhe fazer não sei que pedido, senhor juiz. Está toda apavorada.

Primeiro juiz : E nós nos vamos indo. Até mais ver, D’Andrea!
Trocam felicitações. Os três juízes saem.

D’Andrea : Então, faça-a entrar!

Marranca : Imediatamente, senhor juiz.

Sai Marranca.

Rosinella, dezesseis anos, pobremente vestida, mas com certa decência. Vê-se seu rosto cruzando a soleira da porta. Usa um xale negro de lã.

Rosinella : Com licença?

D’Andrea : Entre, entre!

Rosinella : Serva de vossa senhoria. Ah, Jesus meu, senhor Juiz, vossa senhoria mandou chamar meu pai? Por quê? Este susto nos tirou todo o sangue das veias!

D’Andrea : Se acalme! De que te assustas!

Rosinella : É que nós, excelência, nunca tivemos nada a tratar com a Justiça!

D’Andrea : A Justiça os apavora tanto assim?

Rosinella : Sim, senhor. E lhe digo: não temos mais sangue nas veias! A gente má, excelência, tem assuntos a tratar com a Justiça. Nós somos quatro pobres desgraçados. Se até a Justiça agora se volta contra nós…

D’Andrea : Mas não. Quem lhe disse uma coisa dessas? Fique tranqüila. A justiça não está contra vocês.

Rosinella : E por que então vossa senhoria mandou chamar meu pai?

D’Andrea : Seu pai é que quer ficar contra a Justiça.

Rosinella : Meu pai? Que diz?!

D’Andrea : Não se assuste. Veja que eu mesmo rio… Mas como? Não sabe que seu pai se meteu numa querela com o filho do prefeito e do assessor Fazio?

Rosinella : Meu pai? Não, senhor! Não sabemos de nada. Meu pai está numa querela?

D’Andrea : Aqui estão os autos!

Rosinella : Meu Deus! Meu Deus! Não lhe dê atenção, senhor Juiz! Há mais de um mês, está como louco, meu pai! Não trabalha há mais de um ano, entende? Por que o expulsaram, o jogaram no meio da rua; fustigado por todos, fugindo de todos como um pestilento! Ah, ele quer brigar? Com o filho do prefeito? Está louco, está louco! É esta guerra infame que todos lhe fazem, com esta fama que lhe deram, que lhe tolheu o cérebro! Por favor, senhor juiz: faça ele retirar esta queixa! Faça-o parar!

D’Andrea : Mas sim, minha cara! Quero exatamente isso. E lhe fiz chamarem por isso! Espero que consiga. Mas você sabe: é muito mais fácil fazer o mal que o bem.

Rosinella : Como, excelência?! Mesmo para vossa senhoria?

D’Andrea : Mesmo para mim. Porque o mal, minha cara, se pode fazer a todos e por todos. Mas o bem, só àqueles que precisam.

Rosinella : E o senhor não acredita que meu pai precise?

D’Andrea : Acredito, acredito. Mas é que fazer o bem, minha filha, deixa sempre ressentidos aqueles que queremos beneficiar, e o benefício torna-se dificílimo. Entende?

Rosinella : Não, senhor, não entendo. Mas faça de tudo, vossa senhoria! Para nós não existe mais o bem nesta cidade, não temos sossego.

D’Andrea : Mas vocês não poderiam ir embora desta cidade?

Rosinella : E ir pra onde? Ah, vossa senhoria não sabe como é! A carregamos conosco, esta fama, onde quer que vamos. Não se arranca nem com uma faca. Ah, se visse o meu pai, como mudou. Deixou crescer a barba, um barbarrão que parece uma coruja… Costurou para si um traje, excelência, que quando vestir, assustará a gente, fazendo fugir até os cães!

D’Andrea : Mas por quê?

Rosinella : Só ele sabe por quê! Mas lhe aviso: está enlouquecido! Faça ele retirar a queixa, pelo amor de Deus!

Ouve-se baterem na porta.

D’Andrea : Quem é? Entre!

Marranca : (tremendo, entrando no gabinete) Ei-lo, senhor Juiz! O que… O que devo fazer?

Rosinella : Meu pai?

Rosinella fica de pé, assustada.

Rosinella : Meu Deus! Não deixe ele me ver aqui, excelência, por favor!

D’Andrea : Por quê? O que é? Ele te come viva, se te vê aqui?

Rosinella : Não, senhor. Mas não quer que saiamos de casa. Onde me escondo?

D’Andrea : Aqui. Não tenha medo.

D’Andrea abre a saída oculta na parede esquerda.

D’Andrea : Saia por aqui! Siga pelo corredor adiante e encontrará a saída.

Rosinella : Sim, senhor. Obrigada. Meus cumprimentos a vossa senhoria. Sou sua serva.
Sai pela portinhola.

D’Andrea fecha a portinhola.

D’Andrea : (para Marranca) Faça-o entrar!

Marranca : (abrindo ao máximo a porta, mantendo-se afastado, com medo) Em frente, em frente… Pode entrar…

Entra Rosario Chiàrchiaro. Tem uma cara de maldito que é um espanto aos olhos. Deixou crescer sobre as bochechas amareladas uma barba encrespada e cheia. Sobre o nariz um óculos com armação feita de osso que lhe assemelha a uma coruja. Veste um traje lustrado, cor de rato, que lhe aperta por todos os lados, e uma bengala com alça de chifre na mão.

Entra em passos de marcha-fúnebre, golpeando o chão com a bengala a cada passo, e pára defronte o juiz.

D’Andrea : (com uma explosão violenta de irritação) Ah, faça-me o favor! Que história é essa? Se envergonhe, homem!

Chiàrchiaro : (sem intimidar-se minimamente à explosão do juiz, arreganha os dentes amarelados e diz baixo) O senhor, então, não acredita?

D’Andrea : Lhe pedi que me fizesse o favor. Não façamos mais brincadeiras, caro Chiàrchiaro! Sente-se, sente-se aqui!

D’Andrea se aproxima, fazendo um movimento de colocar a mão no ombro de Chiàrchiaro, para induzi-lo a sentar-se.

Chiàrchiaro : (num segundo, esquivando-se, num frêmito) Não se aproxime! Olhe lá! Quer perder a vista dos olhos?

D’Andrea : (olhando-o friamente) Enfim… Como lhe for mais cômodo… Mandei chamá-lo pelo seu bem. Ali tem uma cadeira: sente-se!

Chiàrchiaro pega a cadeira, senta-se, olha o juiz. Com as mãos, roda a bengala sobre as pernas, como um rolo de macarrão, balançando a cabeça por um tempo. Ao final, resmunga.

Chiàrchiaro : Pelo meu bem? Pelo meu bem, o senhor disse? Tem coragem de dizer “pelo seu bem”! E o senhor se imagina fazendo o meu bem, senhor juiz, dizendo que não crê na maldição?

D’Andrea : (sentando-se) Quer que eu lhe diga que creio? Lhe direi que creio! Está bem?

Chiàrchiaro : (sério, com tom de quem não está para brincadeiras) Não, senhor! O senhor tem motivos para acreditar de verdade. De ver-da-de! Não só, mas deve demonstrá-lo, instruindo o processo!

D’Andrea : Ah, olhe: isto será um pouco difícil!

Chiàrchiaro : (levanta-se, intentando sair) Então me vou!

D’Andrea : Ei, basta! Sente-se! Mandei parar com esta história!

Chiàrchiaro : Eu, com história? Não me provoque; ou terá uma experiência pavorosa… Veja lá! Veja lá!

D’Andrea : Ora, pois eu não vejo nada!

Chiàrchiaro : Veja bem, que estou lhe avisando! Sou terrível, sabia?

D’Andrea : (severo) Basta, Chiàrchiaro! Não me esgote. Sente-se e tratemos de nos entender. O chamei para mostrar que o caminho que você tomou não é propriamente aquele que vai conduzi-lo a bom porto.

Chiàrchiaro : Senhor Juiz, eu estou contra a parede, num beco sem saída. Mas de que porto, de que caminho está falando?

D’Andrea : Deste pelo qual lhe vejo trilhando e daquele lá, da ação que está movendo. Já um e outro, me desculpe, são entre eles assim…

D’Andrea opõe os dois dedos indicadores, para mostrar que os dois caminhos são incompatíveis.

Chiàrchiaro : Não, senhor. São apenas para o senhor, juiz!

D’Andrea : Como não? Aqui no processo, acusa dois homens de difamação por que crêem-no pé-frio, mas quer que eu, justo eu, acredite na sua maldição ou coisa parecida!

Chiàrchiaro : Sim, senhor. Perfeitamente.

D’Andrea : E não parece também ao senhor que temos aí uma contradição?

Chiàrchiaro : Me parece, senhor juiz, uma outra coisa. Que o senhor não entende nada!

D’Andrea : Diga, diga, caro Chiàrchiaro! Talvez seja uma verdade sacrossanta, o que tem a dizer. Mas tenha a bondade de explicar-me, por que não entendo nada mesmo.

Chiàrchiaro : Lhe explico num segundo. Não só o farei ver que o senhor não entende nada, mas ainda ver pra crer que o senhor é meu inimigo.

D’Andrea : Eu?

Chiàrchiaro : O senhor, o senhor mesmo. Me diga uma coisa: sabe ou não sabe que o filho do prefeito contratou para defendê-lo o advogado Lorecchio?

D’Andrea : Sei.

Chiàrchiaro : E sabe que eu, eu, Rosario Chiàrchiaro, eu mesmo, em pessoa, fui ao advogado Lorecchio dar-lhe todas as provas do fato: isto é, que eu não só estava ciente há mais de um ano, que todos, vendo-me passar, faziam o benz’a deus e outros esconjuros mais ou menos discretos. Mas também as provas, senhor Juiz, provas documentais, testemunhos irrefutáveis, entende? Irrefutáveis por causa dos fatos assustadores, sobre os quais se edificou inabalável, inabalável, a minha fama de pé-frio?

D’Andrea : Você? Como? Você forneceu as provas ao advogado do adversário?

Chiàrchiaro : A Lorecchio. Sim, senhor.

D’Andrea : Bem… Confesso que entendo ainda menos.

Chiàrchiaro : Menos? Ora, o senhor não entende absolutamente nada!

D’Andrea : Desculpe… Foi levar estas provas que lhe comprometem ao advogado adversário. Por quê? Para tornar ainda mais certa a absolvição daqueles dois? Mas então por que move o processo contra ambos?

Chiàrchiaro : Mas esta pergunta é a prova, senhor juiz, de que o senhor não entende mesmo nada! Eu entrei com este processo porque quero o reconhecimento oficial do meu poder. Ainda não entende? Quero que seja oficialmente reconhecido este meu poder terrível, que é agora meu único patrimônio, senhor juiz!

D’Andrea : (comovido) Ah, pobre Chiàrchiaro, meu pobre Chiàrchiaro, agora entendo! Belo patrimônio, pobre Chiàrchiaro! E o que fazer com ele?

Chiàrchiaro : O que fazer? Como “o que fazer”? O senhor, caro juiz, para exercer esta profissão de juiz, ainda que tão mal, a exerça, não teve que ser diplomado?

D’Andrea : Bem, sim, diplomado…

Chiàrchiaro : Então! Quero também um diploma, um atestado: a patente de azarento e pé-frio. Com selo e carimbo. Chancela legal. Pé-frio notoriamente reconhecido em régio tribunal!

D’Andrea : E depois? O que fará?

Chiàrchiaro : Que farei? Mas o senhor é mesmo lento, hein? Colocarei no meu cartão de visitas! Ah, e lhe parece pouco? A minha patente! A minha patente! Será doravante a minha profissão! Eu fui arruinado, senhor juiz! Sou um pobre pai de família. Trabalhava honestamente. Me botaram pra fora e me jogaram no meio da rua, por causa desta fama de pé-frio! Na rua da amargura, com uma esposa paralítica, há três anos entrevada no leito! E com duas moças, que se o senhor as visse, senhor juiz, lhe arrancaria o coração a pena que dão. Bonitinhas as duas, mas ninguém vai querer desposá-las, porque são minhas filhas, entende? Sabe de que vivemos agora os quatro? Do pão que deveria encher a barriga do meu outro filho, que tem a sua própria família, três meninos! E lhe parece que meu pobre filho agüentará por quanto tempo este sacrifício por mim? Senhor juiz, não me resta outra alternativa que exercer a profissão de pé-frio.

D’Andrea : Mas o que ganhará com isso?

Chiàrchiaro : O que ganharei? Ora, lhe explico. Mas, repare: me cai bem este traje. Faço tremer! Esta barba… Estes óculos… É só o senhor me fazer a graça de bater o martelo, que entro em campo! O senhor pergunta como? Se ainda me pergunta, repito, é porque é meu inimigo declarado!

D’Andrea : Eu? Mas pareço seu inimigo?

Chiàrchiaro : Sim senhor, o senhor! Porque teima em não acreditar em meus poderes! Mas por sorte acreditam os outros, sabe? Todos acreditam. Esta é a minha fortuna! Existem tantas casas de jogo nesta cidade! Bastará que eu me apresente. Não será preciso dizer nada. O gerente da casa, os jogadores, me pagarão para não ter-me por perto, e fazendo-me ir embora! Vou zumbir como uma mosca ao redor de cada fábrica; vou me fixar ora frente uma loja, ora frente outra. Ali tem uma joalheria? Em frente à vitrine daquela joalheria fico plantado. (Representando) Me ponho a encarar a gente assim. (Representando) E quem acha que entraria na loja para comprar uma jóia, ou mesmo olhar a vitrine? Virá fora o patrão e me colocará nas mãos três, cinco liras para que eu me coloque de sentinela defronte à loja de seu rival. Entende? Será uma espécie de taxa que eu passarei a cobrar.

D’Andrea : A Taxa da Ignorância!

Chiàrchiaro : Da ignorância? Mas não, meu caro! A Taxa da Saúde! Porque acumulei tanta bile e tanto ódio, eu, contra toda esta asquerosa humanidade, que creio realmente, senhor juiz, ter comigo o poder de fazer ruir uma cidade inteira! Percebe! Percebe por Deus! Não vê? O senhor parece uma estátua de sal!

D’Andrea é tomado de uma profunda piedade, atônito, a mirá-lo.

Chiàrchiaro : Mexa-se! E se ponha a instruir este processo que fará história, de modo que os dois acusados estarão livres pela inexistência de delito. Isto significará para mim o reconhecimento oficial de minha profissão de pé-frio!

D’Andrea : (levantando-se) A sua patente?

Chiàrchiaro : (em pose grotesca, batendo a bengala) A minha patente, sim, senhor!

Mal termina de falar, a janela se abre com o vento, fazendo tombar a coluna, derrubando a gaiola com o pintassilgo.

D’Andrea : (gritando, acorrendo) Ah, meu Deus! O pintassilgo! O pintassilgo! Ah, meu Deus! Está morto… morto… A única lembrança de minha mãezinha… Morto… Morto…

Com os gritos, entram apressados os três juízes e Marranca, que ficam pálidos ao verem Chiàrchiaro.

Todos : Mas o que houve?

D’Andrea : O vento… A janela… O passarinho…

Chiàrchiaro : (com um grito de triunfo) Mas que vento?! Que janela?! Fui eu! Não queria acreditar e lhe dei a prova! Eu! Eu! E como morreu o passarinho…

Subitamente, aos temores dos presentes, que tentam se afastar.

Chiàrchiaro : … Assim, um a um, morrerão todos vocês!

Todos : (protestando, suplicando, rogando em coro) Pela sua alma! Segure a língua! Deus, nos ajude! Sou um pai de família!

Chiàrchiaro : (alto, estendendo a mão) E então aqui, depressa, paguem a taxa! Todos!

Os três Juízes : (tirando dinheiro do bolso) Sim, depressa! Aqui está! Mas vá! Pela graça de Deus!

Exultante, para o juiz D’Andrea, com a mão estendida.

Chiàrchiaro : Viu? E ainda não tenho a minha patente! Instrua o processo! Estou rico! Rico!

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